História

Galois: genialidade e paixão

Thierry Petit Lobão

Oisive jeunesse
À tout asservie,
Par délicatesse
J’ai perdu ma vie.
Ah! que le temps vienne
Où les cœurs s’éprennent.

- Chanson de la plus haute tour
Arthur Rimbaud

Introdução

Os versos acima 1 são de um genial poeta francês da segunda metade do século XIX: Jean-Nicolas Arthur Rimbaud; nascido em 1854, veio a falecer, com apenas 37 anos, em 1891. Rimbaud teve uma vida atribulada e mesmo trágica; viveu pouco; escreveu pouco; amou demasiado e, embora tenha composto as suas obras mais famosas ainda na adolescência, é considerado um revolucionário da poesia, sendo um dos principais nomes do simbolismo e um dos precursores do surrealismo. Porém... não é a literatura ou mesmo a história trágica de Rimbaud que abordaremos aqui, mas sim o drama de outro gênio, também francês e do século XIX, que igualmente teve uma vida atribulada; viveu pouco; escreveu pouco; amou em demasia; e da mesma forma, já na adolescência, começou a desenvolver sua obra genial, a qual, outrossim, foi precursora de uma revolução. Essa revolução, entretanto, não se deu na Literatura, mas na Matemática.
Trata-se de Évariste Galois.

Galois e Rimbaud, embora ambos nascidos na França e no mesmo século, não se conheceram; nem poderiam, pois, como veremos, Galois morre antes da metade do século, quando nasce Rimbaud. Interessante, contudo, é observar como os dois jovens franceses, vivendo num período conturbado, foram responsáveis por profundas revoluções em suas áreas de atuação. Curiosamente, a Europa do século XIX foi também palco de outros jovens rebeldes; por exemplo, foi o cenário da vida atribulada de outro gênio da literatura, nascido no Império Russo e morto em 1837 aos 37 anos (mesma idade de Rimbaud): Alexander Sergeyevich Puschkin. Ele publicou seu primeiro poema aos 15 anos e, assim como Rimbaud, foi responsável por uma revolução na poesia russa, considerado um dos principais nomes da moderna literatura russa. Profundamente influenciado pelo iluminismo francês, foi perseguido por suas ideias progressistas e, como Galois, morreu vítima de um ferimento no abdômen resultado de um duelo com pistolas envolto num caso amoroso!

Não temos a pretensão de discutir os aspectos técnicos dos resultados matemáticos de Galois, tampouco a de apresentar uma biografia completa, pois há muitas e melhores publicações sobre esses temas que, ademais, não são nada breves. Queremos apenas levantar algumas questões que cercam sua espantosa trajetória, notadamente em torno de sua morte e da forma enviesada como alguns autores a trataram, transformando-o num herói romântico ou num protagonista político; criando, assim, mais literatura poética do que relatos históricos. Todavia, para tanto, teceremos breves comentários sobre seus trabalhos e fatos de sua vida. Advertimos que todas as traduções de textos em línguas estrangeiras foram feitas pelo autor, que pede desculpas pelos prováveis desacertos.

Évariste Galois, esta é a sua imagem mais conhecida, deveria ter em torno de quinze anos.

A notável obra de Galois

São impressionantes as conquistas de Galois para o desenvolvimento da Matemática, embora o conjunto de seus trabalhos não ultrapasse uma centena de páginas (em torno de sessenta páginas para ser mais exato). Seu principal resultado, entre outros 2 , foi a solução de um intrincado problema que, há muito, assombrava os matemáticos: estabelecer as condições em que uma equação algébrica – um polinômio em uma variável – é solúvel por radicais; ou seja, em que condições as raízes (as soluções!) de um polinômio podem ser obtidas a partir de seus coeficientes com o uso das operações básicas da aritmética, isto é, da adição e da multiplicação e, possivelmente, de suas associadas, como subtração, divisão, potenciação e radiciação. Um bom exemplo é o das soluções de um polinômio de segundo grau; que, como sabem os estudantes do ensino médio, podem ser descritas através da fórmula de Bhaskara 3. Eram também já conhecidos métodos que, assim como no caso dos polinômios de segundo grau, permitiam a obtenção por radicais das raízes dos polinômios de terceiro e quarto graus; todavia o caso dos polinômios de quinto grau permanecia elusivo. Muitos matemáticos de destaque investigaram esse problema, entre estes, podemos citar o suíço Leonhard Euler (1707-1783) e o italiano Joseph Louis Lagrange (1736-1813, seu nome francês deve-se ao fato de que seu pai era francês, embora sua mãe, italiana). Com o tempo, os matemáticos começaram a suspeitar de que a solução por radicais das equações de quinto grau seria impossível em geral; de fato, Paolo Ruffini (1765-1822, nascido nos Estados Pontifícios; hoje, na Itália) tentou demonstrar essa impossibilidade por vários anos, porém não obteve sucesso. Foi apenas o matemático norueguês Niels Henrik Abel (1802-1829) quem primeiramente provou a impossibilidade da solução geral das equações polinomiais de quinto grau por radicais (provavelmente entre 1821 e 1823); um feito espetacular considerando ainda a idade em que o obteve. A propósito, Abel foi outro jovem matemático, com grandes conquistas para a Matemática; também teve uma vida trágica e morreu muito cedo vitimado notadamente pela pobreza. Abel mereceria um artigo exclusivo!

Voltando a Galois, vale notar que a demonstração de Abel fechava a questão da solução por radicais, porém apenas para os polinômios de quinto grau. Galois foi muito além. Desenvolvendo ideias e técnicas inteiramente revolucionárias, obteve um critério geral para decidir sobre a possibilidade da solução por radicais para polinômios de qualquer grau! Para tanto, obteve uma correspondência, antes insuspeitada, entre as subestruturas de dois importantes conceitos que, hoje, utilizamos largamente na Matemática, quais sejam, as estruturas de grupos e de corpos. Em suma, podemos dizer que seu principal resultado afirma (em linguagem técnica moderna):

Teorema 1. Dado um polinômio, em uma variável, de grau n, denotado por p, com coeficientes em um corpo \(K\) e raízes distintas \(x_1, x_2,\dots, x_n\), existe uma correspondência bijetora entre os subcorpos da extensão \(K(x_1, x_2,\dots,x_n)\) que contém \(K\) e os subgrupos de um dado grupo de permutações de \(x_1, x_2,\dots, x_n\). Ademais, as raízes de p são obtidas por radicais se, e somente se, o citado grupo de permutação das raízes é do tipo solúvel. 4

O trabalho de Galois não apenas pôs fim a uma longa demanda na Matemática, como também revelou a importância das estruturas de grupos e de corpos; o nome do primeiro conceito foi dado pelo próprio Galois que o chamou de groupe, em francês.5

O conceito de grupo é um dos mais pervasivos, não apenas no âmbito da matemática, mas em diversas outras áreas de conhecimento – o mesmo vale para os resultados fundamentais da Teoria de Grupos. A Teoria de Corpos, por sua vez, está na base de muitas aplicações teóricas e práticas. Claro está que Galois não foi um pensador isolado ou independente; seu trabalho foi profundamente inspirado por grandes nomes na Matemática, notadamente por Lagrange; entretanto, podemos igualmente citar, Euler, os alemães Carl Friedrich Gauss (1777-1855), Carl Gustav Jakob Jacobi (1804-1851), e outros como Ruffini e o próprio Abel. A influência de seu trabalho na Matemática se estende até nossos dias através das propostas de generalização de suas ideias. Sua concepção seminal de relações, com determinadas características, entre estruturas matemáticas distintas (e não apenas as de grupos e corpos à luz da solução de equações algébricas) é ainda denominada “Correspondência de Galois” em muitos âmbitos. A Teoria de Galois parecia mesmo antever as tremendas generalizações que advieram com a Teoria de Categorias, daí sua extrema fertilidade. O historiador da matemática, Hans Wussing, afirma: Galois está no início da matemática moderna. Galois pôs diante dos matemáticos do século dezenove o problema da “análise da análise” (aquilo que D. Hilbert referiu no fim do século dezenove como “Metamathematik”), o de encontrar o núcleo abstrato de vários domínios e métodos. Esse problema leva ao desenvolvimento do método axiomático e ao estudo das estruturas matemáticas. Já nas palavras do matemático John Stillwell, referindo-se à obra de Galois: Todavia, esses resultados apenas arranham a superfície, e é ainda possível que uma mais extensa ‘Teoria de Galois’ esteja por ser descoberta.

As tortuosas biografias de Galois

A Matemática é pródiga em histórias trágicas de mulheres e homens que a ela se dedicaram, Abel, como já foi mencionado, é um desses casos, Hipátia, que dá nome a essa revista, foi outro caso famoso; porém, talvez pela importância e profundidade da obra de Galois, desenvolvida quando ele ainda era muito jovem, sua personalidade rebelde e contestatória – e talvez até mesmo inconsequente –, assim como sua morte novelesca, num obscuro duelo aos vinte anos, foram certamente responsáveis por tê-lo elevado à condição de paradigma dos gênios atormentados que deixaram esse mundo muito precocemente. Em seu famoso e delicioso livro Men of Mathematics (Homens da Matemática, de 1937) que contém biografias de alguns homens famosos da Matemática 6, Eric Temple Bell (um matemático e historiador escocês) abre o capítulo dedicado a Galois, intitulado Genius and Stupidity (que poderia ser traduzido como: Genialidade e Estupidez), com as seguintes palavras:

Abel was done to death by poverty, Galois by stupidity. In all the history of science there is no completer example of the triumph of crass stupidity over untamable genius than is afforded by the all too brief life of Évariste Galois.7

É oportuno lembrar também da epígrafe que Bell escolhe para encabeçar esse capítulo, citando o poeta alemão Schiller: Contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão.

Com seu inigualável estilo lírico, Bell construiu na mente de muitos de seus leitores8 a figura de Galois como a de um gênio rebelde, apaixonado e não compreendido, e, talvez, até mesmo abandonado, por seus contemporâneos. Bell o pintou com as cores de um herói romântico. Todavia, se é certo que a vida de Galois é exemplo de uma tragédia pessoal e que seu gênio em matemática é incontestável, talvez a ideia de que ele seria uma alma ingênua e de que ele fora inteiramente desconsiderado e injustiçado por seus contemporâneos seja apenas uma superestimada crença romântica sem muito lastro na realidade. Certamente, a imagem oferecida por Bell foi uma das mais influentes, talvez por sua escrita eloquente, e esta é a razão de focalizarmos sua versão; entretanto muitos outros autores escreveram sobre a vida de Galois… alguns de forma mais imparcial que Bell. Leopold Infeld (um físico polonês), em Whom the Gods Love, The Story of Évariste Galois (O Amado pelos Deuses, A Estória de Évariste Galois, de 1948), por exemplo, desenvolve uma “biografia ficcional”, em suas próprias palavras, pois que ele se permitiu preencher algumas passagens obscuras da vida de Galois. Diferentemente de Bell, Infeld sugere que Galois teria sido vítima de um complô político. A primeira biografia de fôlego surgiu pelas mãos de Paul Dupuy, La vie d’Évariste Galois (A vida de Évariste Galois, 1896). Publicada ainda no final do século XIX, é a obra que servirá de base para muitas das que se seguiram; uma obra cuidadosa e que merece ainda ser lida; contudo, ao que parece, Dupuy não teve acesso a muitos dos documentos posteriormente descobertos e que trouxeram alguma luz ao tema. A obra de André Dalmas, inspirada na de Dupuy, Évariste Galois, révolutionnaire et géomètre (Évariste Galois, revolucionário e geômetra, 1956), vem corrigir, em parte, a falta de Dupuy; porém como nos adverte René Taton, Dalmas também não atenta para alguns documentos importantes. Houve, contudo, várias outras publicações que discutiram a vida de Galois, como é o caso dos trabalhos de Louis Kollros (Évariste Galois, 1949), John Sommerfield (The Adversaries, 1952), Fred Hoyle (Ten Faces of the Universe, 1977), Laura Toti Rigatelli (Matematica sulle barricate. Vita di Evariste Galois, 1993), Tom Petsinis (The French Mathematician, 1997), Bruno Aberro (Évariste Galois, mathématicien, humaniste et révolutionnaire, 2007) para citar uns tantos. 9 Algumas destas obras, todavia, pintam Galois com cores muito pessoais ou ainda oferecem versões não comprovadas sobre aspectos da vida de Galois, em especial, acerca das obscuras condições em que se deu sua morte. Como já comentamos, Bell o transforma num herói romântico, que morre pela mulher amada; Infeld, num líder revolucionário, morto por agentes da monarquia, assim como na novela de Sommerfield; já Hoyle sugere, num breve ensaio, que ele teria sido vítima de seus próprios amigos republicanos desconfiados com suas estranhas atitudes. Uma crítica, de certa forma muito apropriada, de algumas dessas visões apaixonadas é desenvolvida nos artigos de Tony Rothman (ver bibliografia). A obra de Rigatelli sugere uma outra (assombrosa!) interpretação para a razão de sua morte; comentaremos essa versão ao final deste artigo. A autora afirma que elaborou suas conclusões a partir de documentação que obteve em temporada na cidade de Paris; ademais, seu livro oferece uma extensa bibliografia que merece ser consultada. O livro de Petsinis é excessivamente ficcional (o autor não esconde este fato ao adotar o subtítulo “A novel”). Oportuno também lembrar o conto de Leo Perutz, Der Tag ohne Abend (O dia sem noite, de 1985), no qual o autor se inspira na vida de Galois para fazer uma reflexão da condição humana.

Venturas e desventuras de Galois

Alguns aspectos da vida de Galois são razoavelmente conhecidos. Como dissemos, há várias biografias publicadas; muitas delas se valem, precipuamente, de cartas por ele escritas ou recebidas, publicações e menções de contemporâneos seus. Sua vida curta e quase novelesca e uma certa imprecisão em torno de alguns de seus fatos marcantes foram, de certo modo, responsáveis pelo surgimento de diversas fantasias sobre suas venturas e desventuras. Aqui, vamos tentar traçar um esboço o mais direto e honesto possível (e muito breve!) de suas aventuras.

Évariste Galois nasceu em 25 de outubro de 1811 em Bourg-la-Reine, uma pequena vila nos arredores de Paris, numa próspera família; seus pais foram Adélaïde-Marie e Nicolas-Gabriel Galois; seu avô paterno fora diretor de uma das escolas da Universidade Imperial e o materno, um importante jurista do Império. Pelo que sabemos, seus pais tinham uma sólida formação e alto nível intelectual, ademais eram espíritos progressistas. Nicolas-Gabriel era um sujeito amável e um típico livre-pensador: revolucionário, libertário, anticlerical e contra a monarquia. Já Adélaïde-Marie tinha um caráter forte, versada na leitura dos clássicos em grego e latim e cética em relação à religião. O ambiente na casa dos Galois parecia estimulante e divertido, com saraus e festas animadas pela encenação de peças e recital de poemas compostos por Nicolas-Gabriel e com a participação do pequeno Galois. Assim, Galois foi o segundo dos filhos de uma família feliz, que ainda incluía seus irmãos: Nathalie-Théodore e Alfred. Todavia, era uma época conturbada na França, que vivia ainda as consequências da grande Revolução; lembremos que a tomada da Bastilha ocorrera há apenas 22 anos antes do nascimento de Galois! Em fevereiro de 1815, Napoleão foge de seu exílio na ilha de Elba e retoma o poder dando início ao período dos famosos 100 dias; momento em que o pai de Galois é eleito prefeito de Bourg-la-Reine e, mesmo após a queda de Napoleão em Waterloo, Nicolas-Gabriel, apesar de suas fortes convicções republicanas, consegue manter sua posição à frente da prefeitura. Todavia, a era da restauração, com o retorno da monarquia ao poder — ainda que, agora, constitucional —, a dinastia dos Bourbon, com Louis XVIII, exigia maiores cuidados daqueles que abertamente se declaravam republicanos, como logo veremos.

Até os doze anos, Galois foi educado em casa por sua mãe; de quem recebeu uma formação baseada nos textos clássicos e uma estoica concepção moral. Essa formação lhe deu as condições para sair-se bem nos primeiros anos do Lycée Royal de Louis-le-Grand em Paris, após sua admissão em outubro de 1823. Era uma escola de prestígio, tendo abrigado outros nomes famosos como os de Robespierre e de Victor Hugo. Lá, Galois mostrou-se, inicialmente, um bom aluno; tendo mesmo sido reconhecido por seus conhecimentos de latim. Também lá, teve seus primeiros contatos com a turbulência política que agitava a França. Houve um caso rumoroso, já no primeiro ano da admissão de Galois, em que o recém indicado diretor da escola — um simpatizante da monarquia que retornou após Napoleão — expulsou 40 estudantes que se rebelaram contra as suas atitudes antiliberais. Galois não estava entre os alunos expulsos, mas, certamente, este episódio fortaleceu suas convicções de antipatia à autoridade, à religião e à monarquia. Foi ainda no colégio que ele começou a desenvolver forte interesse pelas matemáticas, quando conheceu os Éléments de Géométrie (Elementos de Geometria) do matemático francês Andrian-Marie Legendre (1752-1833). Embora não fosse um texto fácil, conta-nos Bell que Galois o devorou e o dominou em pouco tempo. Esse encontro com a Matemática de alto nível foi provavelmente o início de uma profunda mudança no espírito de Galois. Não sabemos se devido ao fascínio que a Matemática lhe despertou ou pelo tédio que lhe provocaram os temas e professores das outras disciplinas, Galois começou a descurar dos demais assuntos e devotar todo seu espírito à Matemática; desenvolveu outrossim uma personalidade rebelde e mesmo indomável. Na opinião de Bell, a incapacidade de seus professores em reconhecer e compreender seu incomensurável talento para as questões abstratas da Matemática foi a principal razão das dificuldades que veio a enfrentar no liceu; Bell dizia, acerca desses professores: His teachers were good men and patient, but they were stupid, and to Galois stupidity was the unpardonable sin.10 Por sua vez, eles o acusavam de “ambição e originalidade afetadas”. O juízo de Bell sobre esses mestres, entretanto, parece muito severo e talvez injusto. Houve professores que souberam identificar o gênio que habitava aquele jovem excêntrico; foi o caso do professor da disciplina Matemáticas preparatórias, chamado Jean-Hyppolite Véron e conhecido como Vernier. Ele o descreveu certa feita como tendo “excelente aplicação e progresso”… Vernier lamentava, todavia, a sua falta de método, referindo-se à pouca importância que Galois dava ao estudo assíduo e ao cumprimento de suas tarefas. Entrementes, seu desinteresse pelas demais disciplinas se acentuava; nas palavras de seu professor de retórica, Desforges:

C’est la fureur des mathématiques qui le domine ; aussi je pense qu’il vaudrait mieux pour lui que ses parentes consentent à ce qu’il ne s’occupe que de cette étude ; il perd son temps ici et n’y fait que tourmenter ses maitres.11

Entre as novidades advindas com a Revolução Francesa, estavam a fundação da École Normale Supérieure e a da École Polytechnique, esta última firmou-se como uma importante instituição científica, atraindo os principais pensadores, cientistas e seus discípulos na Europa; destacada nas matemáticas, além de ser um centro das ideias revolucionárias. Obviamente, ser admitido na École Polytecnique se tornou uma obsessão para Galois; assim é que, em junho de 1828, ele prestou os exames de admissão. Todavia, as exigências para entrada na École Polytechnique eram rigorosas e Galois, provavelmente por seu estrito interesse em matemática, que o fazia negligenciar as demais disciplinas, não estava suficientemente preparado e foi reprovado. Retornou então ao Lycée Louis-le-Grand onde conheceu outro professor de matemática, Louis-Paul-Émile Richard, que, percebendo o talento de Galois, o encorajou tremendamente, e foi sob sua orientação que Galois publicou seu primeiro artigo (citado acima), nos Annales de mathématiques pures et appliquées, de J. D. Gergonne, sobre frações contínuas periódicas. O professor Richard o descreveu como “por vezes doce e razoável, por vezes torna-se muito desagradável”; entretanto, encantado pelo talento de Galois, Richard defendia que ele merecia ser admitido na École Polytechnique mesmo sem os exames regulares, aclamado por sua genialidade!

A relação com o professor Richard foi profícua; com sua ajuda, na primavera de 1929, Galois envia à Académie des Sciences, uma respeitada instituição, dois manuscritos. Um deles, intitulado Recherches algébriques, é encaminhado a Augustin-Louis Cauchy (1789-1857), um dos mais importantes matemáticos daquela época e, certamente, de todos os tempos! Diferentemente do que conta a lenda, Cauchy não perdeu o manuscrito de Galois, tampouco o menosprezou; anunciou mesmo que faria uma comunicação dele na reunião da Academia, o que, infelizmente não ocorreu, até onde sabemos, devido a Cauchy ter adoecido. O segundo manuscrito, Recherches sur les équations algébriques de degré premier, foi confiado a Siméon-Denis Poisson (1781-1857).

No ano seguinte à sua primeira reprovação na École Polytechnique, em 1829, Galois tentou uma vez mais ser nela admitido (não seria permitida uma terceira oportunidade). Todavia, dessa vez, ele foi atingido por um acontecimento que, provavelmente, o abalou terrivelmente 12: poucos dias antes dos exames de ingresso, em 2 de julho, seu pai, Nicolas-Gabriel, por quem Galois nutria um profundo amor, suicidou-se em Paris por não ter conseguido suportar uma sórdida campanha movida contra ele pelo novo pároco da cidade que, aliado aos ultraconservadores locais, forjou alguns poemas constrangedores e os atribuiu a Nicolas-Gabriel, então prefeito de Bourg-la-Reine. Jean-Pierre Escofier Galois nos conta que o pai de Galois lhe teria legado uma carta arrebatadora com um terrível presságio:

Il m’est dur de te dire adieu, mon cher fils. Tu es mon fils aîné et j’ai toujours été fier de toi. Un jour, tu seras un grand homme et un homme célèbre. Je sais que ce jour viendra, mais je sais aussi que la souffrance, la lutte et la désillusion t’attendent. Tu seras mathématicien. Mais même les mathématiques, la plus noble et la plus abstraite de toutes les sciences, pour éthérées qu’elles soient, n’en ont pas moins leurs racines profondes sur la terre où nous vivons. Même les mathématiques ne te permettront pas d’échapper à tes souffrances et à celles des autres hommes. Lutte, mon cher enfant, lutte plus courageusement que je ne l’ai fait. Puisses-tu entendre avant de mourir sonner le carillon de la Liberté. 13

Galois é mais uma vez reprovado nos exames de admissão! Conta a lenda que irritado com as perguntas dos examinadores, atirou num deles o apagador da lousa.

Nesse momento, premido pelas circunstâncias e dificuldades financeiras decorrentes da morte de seu pai, Galois voltou-se, embora sem grande interesse, para a École Normale Superieure (então denominada École Préparatoire), onde receberia uma bolsa de estudos. Lá, não sem algumas outras dificuldades, ele foi enfim aceito no início de 1830; dando prosseguimento à sua pesquisa, pois no primeiro semestre do ano, Galois publica três trabalhos no Bulletin de Férussac. Com respeito aos manuscritos anteriormente submetidos à Academia (em maio e junho de 1829), as informações que temos não são muito claras; ao que parece, Cauchy teria sugerido que aperfeiçoasse o trabalho, o que ele teria feito, submetendo-o em fevereiro ao Gran Prix de Mathématiques (Grande Prêmio de Matemática) da Academia que ocorreria em 1 de março de 1830. Dessa vez, a análise de seu trabalho ficou a cargo de Jean-Baptiste Joseph Fourrier (1768-1830), que o levou para casa e… em 16 de março, morreu! O manuscrito se perdeu e o prêmio foi concedido a Abel (postumamente) e a Jacobi.

Naquele mesmo ano, uma nova revolta popular abalou a França, Paris fervilhou nos dias que ficaram conhecidos como “os três dias gloriosos”, 27, 28 e 29 de julho. Os alunos da École Polytechnique aderiram prontamente aos movimentos de contestação, já os da École Normale foram impedidos, por seu diretor, Joseph-Daniel Guigniault, de sair dos limites da escola. Isso insuflou o espírito rebelde de Galois, que escreveu uma carta condenando o diretor, o que resultou em sua expulsão da École Normale em janeiro de 1831.

A partir de então, os eventos se precipitam e Galois inicia o que parece ter sido, para lembrar Rimbad, sua saison en enfer14. Sem mais a bolsa da École Normale para lhe garantir sustento financeiro, em janeiro de 1831, Galois tentou dar aulas de matemática; em verdade o que inicialmente ele propõe para seu curso seria uma explanação de seus trabalhos; é escusado dizer que o curso redundou em fracasso, quer pelo fato de suas ideias (ou mesmo suas exposições!) parecerem muito inovadoras e intrincadas, quer por seus alunos não serem matemáticos de fato, mas companheiros da causa revolucionária. No início da segunda quinzena de janeiro, submete à Academia uma terceira versão de seus manuscritos a pedido de Poisson; que viria a rejeitá-lo em julho do mesmo ano, após analisá-lo com a assistência de Sylvestre François Lacroix (1765-1865); não está claro se Galois tomou conhecimento do parecer de Poisson, senão até outubro do ano em curso. Seus ideais republicanos recrudesceram e ele se envolveu profundamente nos movimentos políticos; filiou-se à Societé des Amis du Peuple (Sociedade dos Amigos do Povo), uma associação secreta francamente contrária à monarquia, e alistou-se como artilheiro na Garde Nationale, uma organização militar que surgiu durante a revolução francesa e cuja extinção fora exigida pelo rei Louis-Philippe em 31 de dezembro de 1830. Alguns dos componentes dessa guarda, por terem se recusado a depor as armas, foram presos; Galois não estava entre eles, porém, ao que parece, havia um chamado Péscheux d’Herbinville, que será mencionado mais adiante. Finalmente, foram absolvidos num julgamento que se tornou um grande evento político. A comemoração da absolvição se deu num restaurante em 9 de maio de 1831, num banquete ao qual compareceram duas centenas de republicanos, entre eles, Galois e o famoso Alexandre Dumas (pai), autor dos conhecidos O Conde de Monte Cristo e Os Três Mosqueteiros. Nessa celebração, o jovem rebelde Galois faz um irônico brinde ao rei: À Louis-Philippe ! …com uma taça numa mão e uma faca na outra! Galois foi preso no dia seguinte, mas foi absolvido no julgamento que ocorreu em junho; em parte, sob a alegação de que sua frase não fora inteiramente ouvida pela confusão que acontecera durante a celebração; a frase completa seria: À Louis-Philippe, si il trahit ! (A Louis-Philippe, se ele trair! referindo-se a alguma eventual traição dos ideais republicanos). Há quem insinue que sua absolvição se deu porque, ademais de uma inteligente estratégia da defesa que usou o fato de o jantar ter sido um evento fechado, o júri considerou sua atitude como mais uma inconsequência de um jovem imaturo. A respeito deste julgamento, Dumas, que esteve presente ao jantar de comemoração, diria em Mes mémoires (Minhas memórias):

Je n’ai rien vu de plus simple carré que ce procès, dans lequel l’accusé semblait prendre à tâche de fournir aux juges les preuves qui pouvaient leur manquer.15

Contudo, já no mês seguinte, Galois foi preso uma vez mais; nessa ocasião, por estar trajando o uniforme proibido da Guarda Nacional e portar diversas armas no Dia da Bastilha, 14 de julho. Dessa vez, as condições foram mais difíceis e ele foi sentenciado a passar seis meses na prisão de Sainte-Pélagie. Embora provavelmente tenha prosseguido com sua pesquisa em matemática, a estada na prisão parece que foi devastadora para o espírito de Galois; sua irmã, Nathalie-Théodore, após uma visita à prisão, afirmou que ele tinha se tornado “melancólico, envelhecido e que seu olhar estava profundo com se tivesse cinquenta anos”. A situação chegou ao ponto de Galois, num momento de embriaguez por álcool, tenta cometer suicídio; momento em que foi contido pelos demais companheiros de prisão, entre os quais encontrava-se François-Vincent Raspail.16 O destino, todavia, parecia jogar uma vez mais com a vida de Galois, pois, no segundo semestre de 1832, Paris foi assolada por uma terrível epidemia de cólera e Galois foi posto em liberdade condicional e transferido para uma casa de saúde em 16 de março de 1832, a clínica do senhor Faultrier. Uma vez lá, até onde sabemos, Galois apaixonou-se por Stéphanie, filha do médico residente da clínica, Jean-Louis Auguste Poterin du Motel. As informações que temos sobre esse caso e o que se segue a partir de então são muito obscuras, elas se resumem, até onde sabemos, a cartas de Galois para seus amigos e a cópias rasuradas feitas por Galois de duas cartas que ela lhe teria enviado. O próprio nome da jovem, Stéphanie-Félicie Poterin du Motel, somente foi confirmado numa investigação acurada que ocorreu após a metade do século XX 17. Os textos rasurados sugerem que a jovem não teria correspondido ao afeto de Galois e tentou mesmo dissuadi-lo de sua paixão, como o demonstra a primeira carta que conhecemos em que ela lhe implora:

Brisons la sur cette affaire je vous prie […] et ne plus penser a des choses qui ne sauraient exister et qui n’existeront jamais.18

Retrato de Galois feito de memória por seu irmão, Alfred Galois, em 1848.

Isso o levou a uma profunda decepção. Numa carta a seu amigo fiel Auguste Chevalier (uma amizade nascida nos tempos da Escola normal) em 25 de maio, ele a revelou:

Comment détruire la trace d’émotions aussi violentes que celles où j’ai passé ? Comment se consoler d’avoir épuisé en un mois la plus belle source de bonheur qui soit dans l’homme, de l’avoir mise à sec pour la vie ?19

Chegamos então ao gran finale do drama de Galois: na manhã do dia 30 de maio, ele se envolveu num misterioso duelo com pistolas contra um adversário cuja identidade permanece nebulosa, o que lhe rendeu um ferimento mortal no abdômen; conta a lenda que ele foi encontrado em agonia por um camponês que o levou ao Hôpital Couchin no qual morreu no dia seguinte. A cena mais pungente do drama é a que narra a sua morte nos braços de seu irmão mais novo — então com 17 anos — Alfred que, aos prantos, ouviu as últimas palavras de Évariste Galois:

Ne pleure pas, j’ai besoin de tout mon courage pour mourir à vingt ans.

“Não chores, eu careço de toda minha coragem para morrer aos vinte anos.”

Considerações finais

Na noite anterior ao duelo, Galois redigiu um esboço dos seus resultados e o confiou, na forma de uma ‘carta testamento’, ao seu leal amigo Chevalier. O início e final dessa carta são reproduzidos abaixo com as rasuras do próprio Galois:

Mon cher Ami,
J’ai fait en analyse plusiers choses nouvelles.

Tu feras imprimer cette lettre dans la revue Encyclopédique.
Je me suis souvant hasardé dans ma vien à avancer des propositions dont je n’étais pas sûr. Mais tout ce que j’ai écrit là est depuis bientôt un an dans ma tête, et il trop de mon intéret dont je n’aurais pas la démonstrtion compléte.
Tu prieras publiquement Jacobi Gauss de donner leur avis non sur la vérité, mais sur l’importance des théorèmes.
Après celà il se trouvera, j’espère, des gens qui trouveront leur profit à déchiffrer tout ce gachis.
Je t’embrasse avec effusion.
Galois
20

Galois admite algumas eventuais lacunas em suas demonstrações. Todavia ele afirma: Je n’ai pas le temps, ou seja, “Eu não tenho tempo” para melhor desenvolver os resultados. Obviamente, não tem fundamento a difundida lenda21 de que ele teria desenvolvido sua teoria, no todo ou em parte, na noite anterior ao duelo.

Após a morte, suas ideias permaneceram desconhecidas na comunidade matemática. Entretanto, a devoção de seu irmão Alfred e de seu fiel amigo Chevalier, que recopiaram e organizaram suas cartas e anotações e as apresentaram, como fora pedido na ‘carta testamento’, a diversos matemáticos, incluindo Gauss e Jacobi; terminou por levar seus manuscritos às mãos de Joseph Liouville (França, 1809-1882), em 1842.22 Por sua vez, Liouville anunciou à Academia, em 1843 (ver abaixo), ter encontrado profundos resultados nos escritos de Galois; os quais, finalmente, foram publicados em 1846 no Journal de Mathémátiques Pures et Appliquées dirigido pelo próprio Liouville.

Dans les papiers d’Évariste Galois, j’ai trouvé une solution aussi exate que profonde de ce beau problème: "Étant donné une équation irrédutible de degré premier, décider si elle est ou non résoluble à l’aide des radicaux." Le Mémoire de Galois est rédigé peut-être d’une manière un peu trop concise. Je me propose de le compléter par um commentaire qui ne laiserra, je crois, aucun doute sur la réalité de la belle découverte de notre ingénieux et infortuné compatriote.23

As condições e mesmo as razões concernentes à morte de Galois estão ainda envoltas em polêmica. É indiscutível que Galois foi atingido por um disparo de pistola no abdômen e que morreu em consequência desse ferimento, porém o real motivo e o autor do disparo permanecem em mistério. Dumas, em suas memórias, afirma que Péscheux d’Herbinville fora o responsável, já o jornal Le Precursor, já mencionado, atribui essa autoria a alguém de iniciais L. D.; mas quem seria L. D.? Estaria correta a grafia do nome? O “D” seria de d’Herbinville? Ou, como quer Rothman, seria de Duchâtelet? A incerteza em torno a essas questões deu azo às diversas construções, por vezes fantasiosas, dos autores que escreveram sobre Galois; minha opinião particular é a de que muitas delas não se sustentam. A ideia de uma conspiração política, envolvendo espiões e sicários da monarquia, com a participação de uma mulher de má reputação que o teria seduzido, ou mesmo a de um embuste arquitetado por seus próprios companheiros republicanos foram discutidas e desmontadas por vários críticos (ver referências, em particular, Tony Rothman). Algumas dessas construções até que não contradizem frontalmente os fatos conhecidos, porém são improváveis ou inverossímeis. A maioria delas foi, provavelmente, induzida pelas cartas escritas por Galois na noite anterior à sua morte, reproduzidas a seguir.

A primeira foi endereçada a “todos os republicanos”, provavelmente aos companheiros da Société des Amis du Peuple:

Je prie les patriotes, mes amis, de ne pas me reprocher de mourir autrement que pour le pays. Je meurs victime d’une infâme coquette, et de deux dupes de cette coquette. C’est un dans un misérable cancan que s’éteint ma vie. Oh ! Pourquoi mourir pour si peu de chose, mourir pour quelque chose d’aussi méprisable ! Je prends le ciel à témoin que c’est contraint et forcé que j’ai cédé à une provocation que j’ai conjuré par tous les moyens. Je me repends d’avoir dit une vérité une vérité funeste à des hommes si peu en état de l’entendre de sang-froid. Mais enfin, j’ai dit la vérité. J’emporte au tombeau une conscience nette de sang patriote. Adieu ! J’avais bien de vie pour le bien public. Pardon pour ceux qui m’ont tué, ils sont de bonne foi. 24

A segunda dirigida a dois de seus amigos também republicanos N. L. e V. D. (era comum usarem-se as iniciais dos nomes, não necessariamente por economia, mas para proteger identidades), especula-se que seriam Napoléon-Aimé Leblon e Vincent Delaunay ou Vincent Duchatelêt.

Mes bons amis,
J’ai été provoqué par deux patriotes ... Il m’a été impossible de refuser.
Je vous demande pardon de n’avoir averti ni l’un ni l’autre de vous.
Mais mes adversaires m’avaient sommé SUR L’HONNEUR de ne prévenir aucun patriote.
Votre tâche est bien simple : prouver que je me suis battu malgré moi, c’est-à-dire après avoir épuisé tout moyen d’accommodement, et dire si je suis capable de mentir, de mentir même pour un si petit objet que celui dont il s’agissait.
Gardez mon souvenir, puisque le sort ne m’a pas donné assez de vie pour que la patrie sache mon nom.
Je meurs votre ami.
25

Há ainda uma estranha passagem numa carta de Raspail de 25 de julho de 1831 (portanto, Galois ainda se encontra vivo quando da publicação da carta!); nela, ele conta que, quando de sua estada na prisão de Sainte-Pélagie, Galois lhe teria dito:

...et, vous l’entendrez dire, je mourrai en duel, à l’occasion de quelque coquette de bas étage ; pourquoi pas, puisqu’elle m’invitera à venger son honneur qu’un autre aura compromis ! 26

Seria uma estranha profecia do próprio Galois? Ou antes, seria uma fantasia construída por Raspail?

Não discutimos ainda a assombrosa versão proposta por Rigatelli; a autora afirma que chegou a essa versão após uma temporada pesquisando documentos da Biblioteca Histórica da Cidade de Paris no Hôtel de Lamoignon. Ela concluiu que Galois teria se oferecido em sacrifício como um mártir da causa republicana para, através de sua morte, provocar um levante dos partidários republicanos em Paris em oposição à Casa d’Orléans de Louis-Philippe. Teria sido um plano cuidadosamente arquitetado, que incluía a composição de cartas para despistar e a cumplicidade dos republicanos que dele participaram mantendo o silêncio; tudo em nome da causa revolucionária! Seu enterro, de fato, provocou grande comoção, diz-se que milhares de pessoas acorreram à cerimônia, os jornais noticiaram:

Jornal La Tribune de 3 de junho:

Le convoi d’Evariste Galois a eu lieu aujourd’hui samedi a midi. Une députation des Amis du peuple, les élèves des écoles de droit et de médecine, un détachement de l’artillerie parisienne et de nombreux amis l’accompagnaient. 27

Outros jornais também se referiram ao acontecimento como o Journal de Rouen de 3 de junho e, logo em seguida, no Le Précurseur de Lyon. Contudo não houve o levante popular, ao menos como esperava Galois, desencadeado por sua morte; pois, conta-nos a autora, seu enterro foi empanado pela morte concomitante do General Jean-Maximilien Lamarque que fora marechal de Napoleão. Esse acontecimento, sim, provocou uma insurreição nos dias 5 e 6 de junho que ficou conhecida como a Rebelião de Junho 1832 em Paris.

A versão de Rigatelli não desafia qualquer fato conhecido; ademais, a forma como Galois refere-se ao duelo, dando a entender que sua morte seria algo inevitável, é certamente intrigante. Por que tamanha convicção de que iria morrer? Não combina em absoluto com sua personalidade rebelde e desafiadora. Por que a preocupação em solicitar aos amigos que ‘provassem’ que participou do duelo contrariado e de que não mentiria por “un si petit objet”? No entanto, a explicação de Rigatelli é tão chocante que não nos parece plausível!

Talvez a realidade seja mais simples. Embora indiscutivelmente Galois fosse um excepcional gênio matemático, era um jovem atormentado com uma grande dificuldade de relacionar-se com as demais pessoas e com os fatos mais comezinhos da vida humana. Um adolescente, quase uma criança, imaturo e suscetível que nasceu num tempo e num lugar em convulsão e que trazia em si sentimentos contraditórios, aliando candura e rebeldia. O historiador das matemáticas Hans Wußing (1927-2011) o descreve como “uma fascinante mescla de arrogância, real superioridade, autoconhecimento e senso de missão.” Tony Rothman diz ser evidente que ele teria desenvolvido uma paranoia. Sobre isso, vale a pena atentarmos para o comentário feito por Marie-Sophie Germain (1776-1831), ao matemático italiano Gugliemo Libri Carucci dalla Sommaja (1803-1869) que tivera uma altercação na Academia com Galois após uma apresentação do próprio Libri:

...décidément, il y a un sort sur tout ce qui tient aux mathématiques votre préoccupation celle de Cauchy, la mort de Mr. Fourier pour achever cet élève Gallois qui malgré ses impertinences annonçait des dispositions heureuses, en a tant fait qu’il a été chassé de l’école normale, il est sans fortune et sa mère en a fort peu. Rentré chez elle il a continué envers elle cette habitude d’injure dont il vous a donné à vous-même un échantillon après votre meilleure lecture à l’académie, La pauvre dame a quitté sa maison laissant de quoi vivre médiocrement à ce fils et a été forcée de se placer dame de compagnie pour satisfaire à cette nécessité. On dit qu’il deviendra tout a fait fou et je le crains.28

Todavia, vale também observarmos os relatos que fizeram aqueles que com ele conviveram, como seus professores, amigos e contemporâneos; em particular as cenas comoventes narradas por Raspail, em suas cartas sobre as prisões, da relação com Galois. Há ainda uma amorosa carta, enviada à sua tia (irmã de Adélaïde-Marie) que revela um lado terno e carente de Galois.

Em suma, talvez Galois fosse apenas um jovem imaturo e genial, saído abruptamente de um mundo feliz e protetor (aos doze anos!) para um novo mundo em crise e ameaçador. Ingênuo e romântico em excesso ao ponto de bater-se em duelo pela honra de uma jovem ultrajada, assim ele devia pensar, a primeira jovem por quem se enamorou. Sem esquecermos que sobre ele pesava ainda o apelo de seu amadíssimo pai: Lutte, mon cher enfant, lutte plus courageusement que je ne l’ai fait !
Enfim, seu pai estava certo: Un jour, tu seras un grand homme et un homme célèbre ! A obra Galois é grandiosa, das matemáticas ele foi súdito e soberano, para usar uma expressão cunhada pelo próprio Bell, e ocupa uma das principais posições no Olimpo das matemáticas.
Após a morte de Rimbaud, Paul Verlaine lhe dedicou um poema cuja estrofe final canta:
L’histoire t’a sculpté triomphant de la mort
Et jusqu’aux purs excès jouissant de la vie,
Tes pieds blancs poses sur la tête de l’Envie !

“A história te esculpiu triunfante sobre a morte
E até os puros excessos de gozo da vida
Teus pés brancos postos sobre a cabeça da inveja!”
Espero que Verlaine não se ofenda se oferecermos esses versos também a Galois; mas isso é poesia e, conquanto seu poder de apaixonar e sua força arrebatadora... a poesia não é história.

Referências

Muitas obras foram consultadas na elaboração deste texto, é-me impossível listar aqui todas elas; reformando a célebre queixa de Galois, eu poderia dizer: Je n’ai pas d’espace !

E a publicação de novas obras prossegue; quando estava finalizando a redação deste artigo, tomei conhecimento de uma nova, justamente com esse título: J’ai ne pas le temps: Le roman tumultueux d’Évariste Galois, de Jacques Cassabois (Hachette, 2011); ainda não o li, mas essa é somente um mostra que o tema é inesgotável.

Assim é que, por economia, elencarei brevemente as que se tornaram mais centrais neste texto e são, portanto, fundamentais para o seu entendimento. Sugiro fortemente que se observem as bibliografias dessas obras, pois lá estão diversos textos que utilizei; muitos estão acessíveis na Internet.

Embora enviesadas, as obras de E. T. Bell (Men of Mathematics, Touchstone, 1986) e L. Infeld (Who the Gods Love, Whittlesey House, 1948) são importantes; recomendo a bibliografia deste último.

Para narrativa mais sóbria, Paul Dupuy (La vie d’Évariste Galois, Éditions Jacques Gabay, 1992) e de André Dalmas (Évariste Galois, révolutionnaire et géomètre, Fasquelle Éd., Paris, 1956) – ambas podem ser obtidas na biblioteca digital Gallica. Nesta biblioteca digital, estão acessíveis as obras mencionadas de Alexandre Dumas e de François-Vincent Raspail.

Laura Toti Rigatelli (Matematica sulle barricate. Vita di Evariste Galois, Sansoni, Firenzi, 1993) tem uma bibliografia que merece ser consultada; dessa obra, há uma versão revista e ampliada em inglês de 1996.

Como textos críticos, sugiro os artigos de Tony Rothman (The Shorty Life of Évariste Galois, Sci. Amer., 1982 e Science à la mode, Princeton, Uni. Press, Princeton 1989) e de Roger Cooke (Review in Amer. Math. Month., 105, 1998), em particular, as referências nos artigos do primeiro. Interessante também conferir o artigo de Carlos Alberto Infantozzi (Sur la mort d’Évariste Galois, Revue d’Histoire des Sciences, 2, 151, 1968).

Como conjunto completo dos trabalhos de Galois, a referência definitiva é Robert Bougne et Jean-Pierre Azra (Écrits et mémoires Mathématiques d’Évariste Galois. Gauthier-Villars, Paris, 1962); boa crítica dos trabalhos está em Peter M. Neumann (The mathematical writings of Évariste Galois, Eur. Math. Soc., 2011).

Para a Teoria de Galois, numa primeira leitura, sugiro Ian Stewart (Galois Theory, Taylor and Francis, Boca Raton, 2015); para uma segunda leitura, com contextualização histórica: Jean-Pierre Escofier (Springer-Verlag, New York, 2001).

Não encontrei muitas publicações relevantes em língua portuguesa, para citar algumas, Gilberto G. Garbi (O Romance das Equações Algébricas, Makron Books, São Paulo, 1997) faz rápido e honesto relato hitórico e o livro de Mario Livio (A equação que ninguém conseguia resolver, Ed. Record, Rio de Janeiro, 2008) é uma ótima leitura, em nível de divulgação, tanto da vida, quanto da teoria de Galois.

Por fim, vale ressaltar que o historiador das ciências René Taton tem inúmeras publicações sobre o tema, são tantas que listá-las aqui, é impossível, mas vale a consulta.


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Sugestões culturais compiladas por Taíse Jorge.
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Thierry Petit Lobao trabalha no Instituto de Matemática e Estatística da UFBA. Com formação em Física e Matemática, sua área de pesquisa principal é a da álgebra não comutativa, trabalhando também em teoria geral de radicais, estruturas algébricas deformadas e fundamentos da física. Sendo um amante compulsivo dos livros, sua devoção às matemáticas, à literatura e à cultura em geral, somente é suplantada pela completa veneração a seus seis gatinhos.


  1. Ociosa juventude \\ A tudo oprimida,\\ Por delicadeza \\ Eu perdi minha vida.\\ Ah! Que venha o tempo\\ Em que os corações se apaixonam.
    - Canção da mais alta torre↩︎

  2. Com apenas 17 anos, Galois publicou seu primeiro artigo, sobre frações contínuas periódicas, nos Annales de Mathématiques de Gergonne. Desenvolveu ainda estudos sobre funções elípticas, corpos finitos e solução de equações modulares, introduzindo técnicas e conceitos conhecidos como “imaginários de Galois”.↩︎

  3. Em homenagem a Bhaskara Akaria, matemático indiano que viveu de 1114 a 1185, embora esse resultado o tenha precedido.↩︎

  4. O moderno conceito de grupo solúvel é técnico e independente da teoria das equações algébricas, podendo ser encontrado em qualquer texto sobre a teoria de grupos; ademais, o nome “solúvel” se estabeleceu por força do resultado de Galois.↩︎

  5. Muito embora, é importante esclarecer, Galois estivesse se referindo a um tipo particular de grupo conhecido como grupo de permutações.↩︎

  6. A referência a “Homens” no título não é casual; infelizmente, não há um único capítulo no livro de Bell que referira qualquer das muitas mulheres matemáticas e suas inestimáveis contribuições à ciência! E não por desconhecimento de Bell, uma vez que ele cita, apenas en passant, alguns nomes femininos, entre eles o de Sonja Kowalewski – citada como “pupila” de Karl Wilhelm Theodor Weierstrass – e o de Marie-Sophie Germain – lembrada para mostrar a “liberalidade das opiniões de Gauss com respeito às mulheres que trabalham em ciência”. A fabulosa Emmy Noether, responsável, assim como Galois, por profundos resultados, também é lembrada apenas por ser oriunda da Universidade de Göttingen… com o adendo: “a alma mater de Gauss”!↩︎

  7. Abel foi levado à morte pela pobreza, Galois, pela estupidez. Em toda a história da ciência, não há exemplo tão acabado do triunfo da crassa estupidez sobre o gênio indomável que aquele oferecido pela extremamente breve vida de Évariste Galois.↩︎

  8. O autor dessas mal traçadas linhas confessa que, também ele, foi seduzido por Bell quando leu esse livro ainda na adolescência.↩︎

  9. Galois também inspirou peças de teatro, filmes e mesmo poemas.↩︎

  10. Eles eram homens bons e pacientes, porém estúpidos, e para Galois a estupidez era o pecado imperdoável.↩︎

  11. É o furor das matemáticas que o domina; tanto que penso ser melhor para ele que seus pais consentam em que ele não se ocupe senão desse estudo; ele perde seu tempo aqui e apenas atormenta seus mestres.↩︎

  12. Muito embora Galois não deixe esse sentimento transparecer em seus escritos.↩︎

  13. É-me difícil dizer-te adeus, meu querido filho. Tu és meu filho mais velho e sempre tive orgulho de ti. Um dia, tu serás um grande homem e um homem célebre. Sei que esse dia virá, mas sei também que o sofrimento, a luta e a desilusão te aguardam. Tu serás matemático. Porém mesmo as matemáticas, a mais nobre e a mais abstrata de todas as ciências, por mais etéreas que sejam, não têm menos profundas suas raízes sobre a terra em que vivemos. Mesmo as matemáticas não te permitirão escapar dos teus sofrimentos e daqueles dos demais homens. Lute, meu querido filho, lute mais corajosamente do que eu. Que possas ouvir, antes de morrer, soarem os dobres da Liberdade.↩︎

  14. Une saison en enfer (Uma temporada - no sentido de estação - no inferno) é uma famosa coletânia de Rimbaud.↩︎

  15. Eu nunca tinha visto nada mais simples que este processo, no qual o acusado parecia ter assumido a tarefa de fornecer aos juízes as provas que poderiam lhes faltar.↩︎

  16. Raspail é outro insurgente, que viria a se tornar um famoso político republicano e um dos fundadores da biologia celular.↩︎

  17. Ver o artigo de C. A. Infantozzi.↩︎

  18. Acabemos com esse assunto, eu vos peço … e não mais pensar em coisas que não teriam existido e que não existirão jamais.↩︎

  19. Como destruir o rastro de emoções tão violentas quanto aquelas por que passei? Como se consolar de ter esgotado em um mês a mais bela fonte de felicidade que há para o homem, de a ter secado para a vida?↩︎

  20. Meu caro Amigo,
    Eu fiz várias coisas novas em análise.

    Tu farás esta carta ser impressa na revista Enciclopédica.
    Eu me arrisquei muitas vezes em minha vida ao avançar proposições das quais eu não tinha segurança. Porém tudo o que eu escrevi aqui estava há quase um ano em minha mente, e é muito do meu interesse não me enganar para que se suspeite de eu ter enunciado teoremas dos quais eu não teria a demonstração completa.
    Tu rogarás publicamente a Jacobi Gauss a darem suas opiniões não sobre a verdade, mas sobre a importância dos teoremas.
    Após isso haverá, eu espero, pessoas que encontrarão benefício ao decifrar toda essa desordem.
    Eu o abraço com carinho.
    Galois↩︎

  21. Ver: Evariste Galois oder das tragische Scheitern eines Genies (Évariste Galois ou o trágico fracasso de um gênio), de Bernd Klein.↩︎

  22. Chevalier publicou, em setembro de 1832, na Revue Encyclopédique a carta testamento, atendendo ao pedido de Galois, bem como um necrológio.↩︎

  23. Nos papéis de Évariste Galois, eu encontrei uma solução tão exata quanto profunda desse belo problema: “Dada uma equação irredutível de grau primo, decidir se ela é ou não resolúvel com a ajuda de radicais."  A Exposição de Galois foi redigida, quiçá, de maneira demasiado concisa. Eu me proponho a completá-la por um comentário que não permitirá, creio eu, dúvida alguma sobre a realidade da bela descoberta de nosso engenhoso e desafortunado compatriota.↩︎

  24. Eu peço aos patriotas, meus amigos, que não me condenem por morrer de outra forma que não pela pátria. Eu morro vítima de uma infame coquete, e de dois trouxas seus amigos. É por uma miserável futrica que se apaga minha vida. Oh! Por que morrer por tão pouca coisa, morrer por algo tão desprezível! Tomo o céu por testemunha de que foi coagido e forçado que cedi a uma provocação que tentei conjurar por todos os meios. Eu me arrependo de ter dito uma verdade, uma verdade terrível a homens tão incapazes de ouvi-la com sangue-frio. Mas, enfim, eu disse a verdade. Levo ao túmulo uma consciência limpa de sangue patriótico. Adeus! Tive uma boa vida para o bem público. Perdão para aqueles que me terão matado, eles estão de boa fé.↩︎

  25. Meus bons amigos,

    Fui provocado por dois patriotas... Foi-me impossível recusar.
    Eu lhes peço perdão por não ter advertido a nenhum dos dois. Porém meus adversários exigiram EM NOME DA HONRA de não prevenir qualquer patriota. Vossa tarefa é bem simples: provar que me bati contra minha vontade, isto é, após ter esgotado todos os meios de conciliação, e dizei se eu sou capaz de mentir, de mentir por algo tão ínfimo como o de que se trata.
    Guardem minha lembrança, pois que o destino não me concedeu o suficiente de vida para que a pátria soubesse do meu nome.

    Morro vosso amigo.↩︎

  26. ...e, vós ouvireis dizer, eu morrerei num duelo, devido a alguma coquete de classe baixa, por que não, já que ela me convidará a vingar sua honra que um outro terá comprometido!↩︎

  27. O féretro de Évariste Galois ocorreu ontem, sábado, ao meio-dia. Uma comissão dos Amigos do povo, alunos das escolas de direito e medicina, um destacamento da artilharia parisiense e muitos amigos o acompanharam.↩︎

  28. …decididamente há uma maldição em tudo que se relaciona com as matemáticas, sua preocupação é a [mesma] de Cauchy, a morte do Sr. Fourier pode acabar com esse aluno Gallois que, malgrado suas impertinências, anunciava felizes aptidões [significando que tinha talento], tanto fez que foi expulso da Escola Normal, ele não tem recursos e sua mãe os tem muito poucos. Retornando à casa da mãe, ele continuou com este hábito do insulto, coisa da qual lhe deu, a vós mesmo, uma amostra após vossa melhor leitura à academia. A pobre senhora abandonou sua casa deixando o filho viver mediocramente e foi forçada a tornar-se dama de companhia para satisfazer essa necessidade. Diz-se que ele ficará completamente louco e eu o receio.↩︎