História
Hipátia de Alexandria: uma cientista que precisamos conhecer
Introdução
Em tempos não tão distantes, era difícil encontrar/conhecer mulheres cientistas, talvez pela dificuldade de termos acesso às suas produções ou porque, muitas vezes, a sociedade não classificasse as produções/descobertas feitas por elas como ciência, ou ainda devido ao fato de que a sociedade proibisse o acesso das mulheres aos espaços nos quais se produzia conhecimento, como as universidades . Essa escassez de informações sobre as descobertas e invenções femininas dava a impressão de que mulheres não faziam ciência ou, pior ainda, que mulheres não tinham capacidade de produzir conhecimento. Este pensamento era e ainda é equivocado.
Ao longo da História da humanidade, encontramos mulheres que dedicaram sua vida ao fazer científico. Quando os laboratórios estavam localizados nas residências dos cientistas, elas tinham acesso a eles e trabalhavam como parceiras ou assistentes dos homens que estavam autorizados a pesquisar, a produzir conhecimento e a publicá-lo. Não raras vezes, a pesquisadora era uma mulher, porém quem levava a fama era um homem da família. Neste período, as descobertas das mulheres eram publicadas em nome dos homens da família (marido, pai, irmão, filho) e a participação delas na descoberta era apagada, ocultada. Isso se dava porque a sociedade não permitia que as mulheres pesquisassem, escrevessem, estudassem. Cabe destacar que a sociedade não é um ente sobre-humano capaz de impor as determinações aos humanos. A sociedade é formada por homens e mulheres, em sua diversidade de cor, idade, crença religiosa, orientação sexual, e as regras impostas por ela são definidas por estes humanos, ou melhor, pelos humanos que têm o poder de decidir. Ao longo da história, esse grupo foi composto majoritariamente, para não dizer exclusivamente, por homens, brancos e ricos. Assim, as regras sociais eram e ainda são definidas pelos homens.

Entretanto, mesmo enfrentando muitos obstáculos, muitas mulheres conseguiram inscrever seus nomes no mundo científico. Foi uma mulher a primeira cientista a conquistar duas vezes o prêmio Nobel em duas áreas do conhecimento diferentes (Marie Curie). Outra mulher foi a primeira programadora de um computador, um século antes do computador existir (Ada Lovelace). Também uma mulher fundou a primeira universidade. Fatima al-Fihri, nascida na Tunísia no ano 800, fundou, na cidade de Fez, em Marrocos, a universidade de al-Qarawyyin, a mais antiga ainda em funcionamento. Muitos outros inventos e descobertas que fazem parte de nosso cotidiano são invenções de mulheres .
Nos últimos anos tenho observado um movimento de resgate das histórias de mulheres que contribuíram sobremaneira para o desenvolvimento do conhecimento no mundo. As iniciativas com este fim consistem em blogs, perfis nas redes sociais, livros infantis, dentre outros. A revista Hipátia, que hora lança seu primeiro número, traz em seu título o nome de uma cientista que todos deveriam conhecer: Hipátia de Alexandria. Fui convidada a escrever este artigo pelo fato de ter escrito o livro infantojuvenil “Hipátia de Alexandria: a matemática, astrônoma e filósofa lendária”, publicado pela Editora Inverso em 2020. De imediato aceitei o convite, pois é sempre um prazer falar/escrever sobre esta mulher incrível que viveu para produzir e disseminar conhecimento e que teve sua vida ceifada devido a isso. Optei por usar um tom coloquial neste texto, porém mantendo o rigor científico que um artigo acadêmico requer. Então vamos conhecer um pouco mais sobre a vida de Hipátia.
A infância de Hipátia
As informações sobre Hipátia são difíceis de localizar. Pouco se sabe sobre sua infância e muitas informações são imprecisas. Sabe-se que ela nasceu entre os anos 355 e 370 da era cristã em Alexandria, no Egito. Filha do filósofo e matemático Theon de Alexandria. O nome de sua mãe se perdeu no tempo. Talvez tenha sido uma cientista, uma entendida sobre plantas, raízes e rezas ou, quem sabe, uma dona de casa dedicada. Quem pariu Hipátia e o que fazia não saberemos, pois a história não preservou seu nome e tampouco sua memória.
Incentivada pelo pai, que também era sua principal fonte de inspiração, pôde estudar, e como estudou essa menina. Frequentou a Academia de Alexandria, onde apaixonou-se pelo universo e se pôs a desvendar seus mistérios por meio da astronomia. A religião e seus encantos e dogmas também mereceram sua atenção (mal sabia que seriam religiosos e seus seguidores que poriam fim a sua vida). Estudou poesia e arte, talvez para entender o quão belo era o mundo a sua volta, ou para enxergar alguma beleza na sociedade contemporânea, ou, quem sabe, para melhor se inserir nas rodas de conversas da sociedade da época. Conhecimento em qualquer área e época é conhecimento e faz com que tenhamos vários pontos de mirada sobre um mesmo problema. Desenvolveu ainda o dom da oratória e da retórica e isto lhe foi muito útil no futuro. As pessoas gostavam de ouvi-la falar, pois, além de seus discursos trazerem muito conhecimento, eram agradáveis de se ouvir. Mas foram as ciências exatas que a conquistaram profundamente, de modo especial, a matemática e a astronomia. Foi nestas áreas que ela ganhou notoriedade e se eternizou.
Com a mente centrada nos tempos atuais, somos levados a pensar sobre as brincadeiras de Hipátia. Do que será que ela brincava? Será que brincava? Tinha uma melhor amiga? Estas perguntas ficarão sem resposta, mas cada qual pode fazer as elocubrações que quiser. Difícil é imaginar ela brincando em um ambiente que não fosse rodeado por ciência, livros, talvez um laboratório.
Na adolescência teve o privilégio de estudar em Atenas, na Grécia, e lá frequentou a escola neoplatônica, escola essa cujas doutrinas seguiam os pensamentos espirituais e cosmológicos de Platão. Após concluir seus estudos, voltou para Alexandria, onde viveu o restante de sua breve vida (talvez para a época não foi tão breve assim!).
Na época em que Hipátia viveu não havia uma lei que proibia os estudos para as mulheres, entretanto poucas se embrenhavam pelo mundo do conhecimento. Talvez a falta de incentivo e de oportunidades as afastassem dos estudos. Ou, quem sabe, foi só a história, escrita predominantemente pelos homens, que não registrou o nome de outras mulheres cientistas. Isso não ocorreu com Hipátia, que tinha seu pai como grande incentivador, e sua existência nos mostra que, quando têm oportunidades, as mulheres constroem lindas histórias no mundo científico.
O casamento de Hipátia com a ciência
Sim, casamento. Quando questionada por que não se casava e tinha filhos ela respondia: “Sou casada com a ciência!”. Já naquela época tinha-se a percepção que as mulheres tinham que se casar e procriar. As que não seguiam por este caminho causavam estranheza. Porém, parece que Hipátia não se preocupava com isso, afinal tinha coisas mais relevantes a fazer.
Quando esteve na Grécia, Hipátia se dedicou aos estudos matemáticos e filosóficos. Aparentemente, essas disciplinas são muito distantes, porém não o são. Ambas necessitam de capacidade de raciocínio elevada para enxergar além do que os fatos revelam de imediato. A filosofia é expressa pelas palavras e a matemática pelos números. Ela se destacou nos estudos filosóficos e foi considerada o maior nome da área, recebendo, inclusive, o apelido de “A Filósofa”. Em matemática, se debruçou de modo especial sobre a aritmética de Diofanto de Alexandria, que viveu no século 3 a.C. e é considerado o pai da álgebra. Ousada que era, pretendia unificar as ideias de Diofanto com os pensamentos neoplatônicos. Por lá também estudou medicina. Naquela época as ciências não eram tão compartimentadas como o são na atualidade, então era comum que os cientistas contemporâneos à Hipátia se dedicassem a várias áreas do conhecimento.
Ao retornar ao Egito, atuou como professora de matemática e filosofia na Academia de Alexandria. Pessoas vinham de todos os lugares para ouvir seus ensinamentos. Ela proferia palestras na ágora, uma espécie de praça, e os ouvintes ficavam embebidos em sua capacidade de compartilhar o seu conhecimento, tão profundas eram suas falas.
Junto a seu pai lançou comentários sobre a obra “Os Elementos”, de Euclides. Esta obra é composta por 13 volumes e trata sobre geometria, álgebra e aritmética. Estes estudos aprofundaram seu conhecimento matemático e ela se tornou referência para os matemáticos da época e se fez famosa por encontrar soluções para problemas que outros matemáticos não conseguiam resolver. Sempre que surgia um problema de difícil solução, recorriam a Hipátia que o resolvia.
Suas principais contribuições à matemática foram:
Comentários sobre “A Aritmética”, de Diofanto. Suas notas e observações enriqueceram e popularizaram a obra e, por serem escritas em uma linguagem didática e acessível, puderam ser usadas por iniciantes nos estudos nessa área.
Comentários sobre “Os Elementos”, de Euclides. Além de ampliar e popularizar o texto, também o atualizaram.
Reinterpretou a obra “As Cônicas”, de Apolônio de Perga, tornando os conceitos ali expressos acessíveis para quem se interessasse pelo tema.
Hipátia era muito criativa e se aventurou no campo das invenções. Em sua época não havia calculadoras e ela criou um método eficaz para fazer grandes divisões. Este método facilitava o trabalho de matemáticos e astrônomos. Ela tinha verdadeiro fascínio pelo firmamento e buscava formas de conhecê-lo cada vez melhor. Sua mente curiosa e criativa a levou a produzir diversos instrumentos, dentre eles, destaca-se a construção de um astrolábio, um hidrômetro e um higroscópio.
Aos 30 anos assumiu a direção da Academia de Alexandria. Neste período ela publicou muitos livros e tratados sobre álgebra e aritmética, porém as suas obras se perderam com a destruição da Biblioteca de Alexandria no século VII. Os livros da biblioteca foram queimados e todo o conhecimento que eles guardavam viraram cinzas. Este é um dos motivos pelos quais as informações sobre ela sejam tão imprecisas.
Hipátia teve muitos discípulos com os quais trocava correspondências sobre os estudos que estava realizando. Um dos principais discípulos foi Sinésio de Cirene, com quem mantinha uma assídua troca de correspondência. Ele registrou a singularidade do pensamento de Hipátia e, ao publicar a correspondência mantida com ela, fez com que sua contribuição para a história da humanidade chegasse até nós.
A morte de Hipátia
Como tudo na vida de Hipátia, a motivação para seu assassinato também tem mais de uma versão. Sua forma de tratar a todos os alunos, judeus, cristãos ou pagãos, com respeito, educação, tolerância e racionalidade despertou ciúmes e inimizades. Por ser pagã e defender o racionalismo científico, contestando, com base nele, o fator divino nos acontecimentos naturais e do cosmo, foi acusada de heresia e bruxaria . Seu conhecimento foi considerado pecaminoso, perigoso e indesejado. O cristianismo encontrava-se em expansão e os cristãos da época não toleravam os que professavam outra fé (recentemente vivenciamos algo similar). Talvez por isso, merecesse e devesse morrer. Embora Alexandria fosse uma cidade na qual cristãos, judeus e pagãos convivessem cotidianamente, sendo um centro cultural que recebia pessoas oriundas de todas as partes do mundo, o poder estava em disputa entre autoridades religiosas e políticas. Hipátia estava inserida neste embrolho.
Devido ao seu conhecimento e eloquência, conquistou o cargo de conselheira de Orestes. Ele havia sido seu aluno e ocupava o cargo de prefeito do Império Romano do Oriente (autoridade política). Orestes, que era um cristão moderado, nutria uma inimizade com o bispo da igreja de Alexandria, Cirilo (autoridade religiosa), que era um cristão radical. O bispo não tinha nenhuma tolerância com as pessoas que professavam fé divergente da cristã. Para ele, essas pessoas eram hereges. A divergência entre estes dois homens resultou no assassinato de Hipátia.
Uma das versões, e na minha opinião a menos provável, é que ela, uma mulher acusada de blasfêmia e de sentimentos anticristãos por ter se recusado a abandonar o paganismo, usava sua forte influência sobre Orestes, um cristão tolerante, para impedi-lo de se converter de vez ao “verdadeiro” cristianismo. Por isso foi morta. Cabe destacar que a blasfêmia que se referiam era conhecimento, sabedoria e independência.
Outra versão sobre a motivação para o seu assassinato brutal dá conta de que ela, “usando seus conhecimentos astronômicos, fundamentais para a definição da Semana Santa, havia chegado a uma data diferente da que havia sido anunciada pelo bispo Cirilo, autoridade máxima da igreja naquela época.” O bispo pediu que ela assumisse diante do povo que havia se equivocado, errado os cálculos da data. Porém, ela era a melhor matemática e astrônoma da época e sabia o que estava falando, sabia que estava certa, que o erro estava nas datas que o bispo apresentou e se recusou a atender à solicitação da autoridade religiosa. Contrariado, o bispo ordenou que Hipátia fosse punida exemplarmente, e assim foi feito.
A terceira versão sobre a motivação de sua morte cruel e trágica diz que Cirilo e seus seguidores estavam furiosos com o assassinato do monge cristão Amônio, que teria sido morto sob as ordens de Orestes. Então, para se vingar do prefeito, o bispo ordenou que Hipátia fosse assassinada. Cirilo tinha certeza de que isso abalaria as estruturas de Orestes, uma vez que Hipátia era sua principal conselheira. Assim, o bispo se sentiria vingado. Em suma, Hipátia pagou com a vida pela disputa entre dois homens.
Provavelmente a junção das três versões tenha sido o estopim para que em uma tarde de março de 415, mês da quaresma, quando Hipátia chegava a sua casa, retornando da Academia de Alexandria, onde trabalhava, fosse vítima de uma emboscada e arrancada de sua carruagem por uma horda de cristãos raivosos e afastados do verdadeiro ensinamento de Cristo. Eles a arrastaram pelas ruas até uma igreja onde a despiram. Não há precisão se ali ela foi espancada até a morte ou esfolada viva. Há relatos de que seus algozes usaram pedaços de telha para deixar seu corpo em carne viva. Não satisfeitos com sua dolorosa morte, a esquartejaram e jogaram seu corpo em uma fogueira, simulando o sacrifício de um animal em ritos pagãos.
Não importa qual foi a motivação para a barbárie que foi o assassinato de Hipátia, todas levaram ao silenciamento de uma mulher que amava a ciência acima de tudo. O trágico fim da vida desta mulher incrível tinha que ser exemplar, para assegurar o poder ao bispo Cirilo e o foi.
O legado de Hipátia
Toda a produção de Hipátia foi perdida no incêndio e destruição da biblioteca de Alexandria, ocorrida no século VII. Entretanto os relatos e as correspondências que Hipátia trocava com seus alunos dão conta de que ela foi considerada a maior matemática e filósofa de Alexandria, e talvez do mundo em sua época. Os historiadores afirmam que, embora ela tenha se inspirado em seu pai, ela o suplantou em muito no que diz respeito às contribuições para o mundo científico.
Para a igreja, Hipátia e todas as mulheres que detinham conhecimento, eram livres, pensadoras, exerciam poder sobre o povo de suas comunidades, nos próximos mil anos, foram consideradas bruxas, caçadas e queimadas vivas. A “caça às bruxas” nada mais foi do que o assassinato de mulheres sábias e livres.
Para nós, mulheres cientistas, fica a certeza de que muitos obstáculos são impostos a nós pelo simples fato de sermos mulheres. Que homens não hesitam em atacar uma mulher sábia, mesmo que a disputa seja entre dois deles. O saber das mulheres incomodava desde os tempos de Hipátia e, ainda hoje, persiste incomodando. Porém, na atualidade, não conseguem nos matar e tampouco nos calar.

Hipátia existiu ou é uma lenda?
Há quem diga que Hipátia nunca existiu. Para esses, é difícil aceitar que em tempos tão remotos havia uma mulher inteligente, livre, com poder de oratória e que era respeitada pela maioria dos homens e mulheres de seu tempo. Mesmo os que a invejavam, a admiravam e por isso a invejavam. Eu considero pouco provável que a sociedade criou uma lenda em torno de uma mulher cientista em qualquer época, então Hipátia, esta mulher formidável, existiu e foi silenciada por uma horda de cristãos que desconheciam os preceitos do cristianismo.
Considerações Finais
O “efeito Matilda”, preconceito frequente em reconhecer a contribuição das mulheres à ciência, se manifesta na vida de quase todas as mulheres que decidem se dedicar à carreira científica. Na vida de Hipátia, entretanto, foi diferente. O reconhecimento de que ela era a mais brilhante cientista de sua época a levou à morte trágica. Sua história é, ao mesmo tempo, linda e triste. Há a necessidade de se resgatar e disseminar as contribuições de Hipátia para a ciência, para que sua trajetória e seu amor à ciência cheguem ao maior número de pessoas possível.
A criação desta revista com seu nome é uma forma de eternizar Hipátia de Alexandria e proporcionar que mais pessoas a conheçam. Vida longa à Revista Hipátia!

Lindamir Salete Casagrande é Pós-doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos pelo PPGNEIM/UFBA (2015); mestra (2005) e doutora (2011) em Tecnologia pelo PPGTE/UTFPR e graduada em Ciências com Habilitação em Matemática pela Fundação de Ensino Superior de Pato Branco (1990). Professora de matemática aposentada pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (de 1994-2017) e atua como professora voluntária no PPGTE. É escritora de biografias de mulheres para o público infantojuvenil. A série Meninas, Moças e Mulheres que inspiram, de sua autoria, conta com seis livros até o momento(maio de 2023). Mulher arteira também gosta de pintar, bordar e fazer tricô. Ama estar perto da natureza e, de modo especial, do mar. Gosta de ser chamada de “contadora de histórias”.