Diálogo

com Eliza Maria Veras da Silva

Márcia Barbosa de Menezes

A seção Diálogo da Revista de Matemática Hipátia é um espaço de encontros, conversas, trocas de ideias e divulgação de história de vida, trajetórias acadêmicas e realizações das pessoas que contribuíram para a construção da Matemática.

Neste momento, abriremos nosso encontro conversando com a primeira Doutora em Matemática da Bahia e uma das primeiras do Brasil, a doutora Eliza Maria Ferreira Veras da Silva — uma mulher que pode ser reconhecida como uma “guerreira negra”.

Agradecemos imensamente à professora Eliza pela oportunidade de conhecermos um pouco da sua trajetória de vida acadêmica.

Pequena Biografia

Eliza Maria Ferreira Veras da Silva nasceu no dia 4 de fevereiro de 1944, na cidade de Ituberá, Bahia, filha de uma relação inter-racial, entre Dahil Ferreira, mãe branca e dona de casa, e Edgard Moreira Rosa, pai negro e coletor da Receita1. Na época em que Eliza terminou o ensino primário, para prosseguir os estudos era necessário fazer o chamado exame de admissão ao ginásio. Ela já demonstrava bom desenvolvimento escolar e queria prosseguir os estudos. Como residia no interior, só lhe restavam duas opções: escola pública ou escola particular para formar-se como professora primária. Mas sua condição financeira não lhe permitiria escolher a escola privada. Com a intervenção de seu tio, que trabalhava na escola particular, Eliza teve a chance de participar do exame e, caso fosse aprovada, teria a oportunidade de receber uma bolsa de estudos para prosseguir sua formação. Eliza foi aprovada e continuou seus estudos até a chamada Escola Normal, correspondendo ao Ensino Médio atual.

Professora Eliza Maria.

Durante o período do curso de normalista, Eliza foi uma excelente aluna, manteve durante todos os três anos de estudo a média 10 (dez) em todas as disciplinas — um mérito exemplar, o que a levou a ser agraciada com uma bolsa de estudos ofertada pela Phillips 2.

A premiação recebida pela Phillips proporcionou a Eliza a oportunidade de começar a sonhar com um voo mais alto em direção aos estudos universitários, algo até então inimaginável para uma jovem de baixa renda.

Com a premiação, Eliza resolveu se mudar para Salvador e prestar concurso para docente estadual. Foi aprovada e nomeada professora do Estado assumindo a função no Colégio Antônio Euzébio no turno noturno e, paralelamente, se preparava para realizar o Exame Vestibular. Com o coração pulsando pelo estudo da matemática, Eliza fez vestibular na Universidade Federal da Bahia em 1964 e foi aprovada em 2o lugar. Formou-se em 1967 nas duas habilitações, Licenciatura e Bacharelado, iniciando então sua trajetória acadêmica.

Começou a lecionar no Colégio Central, no chamado Curso Colegial, ingressando depois, em 1969, no Instituto de Matemática da UFBA como docente, assumindo o cargo de Auxiliar de Ensino, com carga horária de 20 horas. Nesse período, ela conviveu com a professora Lolita Campos Carneiro, diretora do Instituto na época, que lhe ofereceu uma bolsa de estudos de 8 meses, financiada pela Unesco, para a realização do curso de mestrado na França. Em 1973, ela concluiu seu mestrado com a dissertação intitulada “Matrizes de Permutação e Leis de Casamento nas Sociedades Primitivas”, defendida na Universidade de Montpellier, sob a orientação do matemático brasileiro, residente na França, Artibano Micali.

Eliza voltou ao Brasil e continuou seus estudos, mantendo o intercâmbio de orientação com o professor Artibano. Após um período, o professor Artibano conseguiu uma bolsa de estudos do governo francês para ajudá-la a voltar à França e realizar seu doutoramento. Eliza defendeu sua tese de doutorado em Álgebra, intitulada “Álgebras Não Associativas”, em 1977.

Eliza foi construindo suas estratégias de sobrevivência, superando muitas vezes seus próprios limites de cansaço físico e emocional, na luta para progredir no espaço profissional escolhido. Ao alcançar o grau de Doutora em Matemática, ela se tornou merecedora de reconhecimento e de exemplaridade para outras mulheres negras, que podem confiar em seus próprios potenciais pessoais e culturais.

Entrevista

RMH —

Como e quando surgiu o seu interesse pela Matemática?

Eliza —

Na verdade, não sei lhe dizer quando e nem como surgiu meu interesse. O que eu posso lhe dizer é que sempre fui boa aluna em todas as disciplinas. Como a Matemática é uma disciplina exata, eu comecei a ter uma tendência maior para estudá-la e fui me apaixonando e me aprimorando. Na quarta série do Curso Primário (atual Ensino Fundamental), tive nota dez em todas as matérias, inclusive em Matemática. Então, fui estudando, me sentindo empolgada e, quando chegou a época do vestibular, fiz a escolha pela Matemática. Sempre adorei estudar Matemática desde pequena. Tinha facilidade. Não houve incentivo de pessoas, professores/as, o gosto pela matemática foi algo meu, veio de dentro. Foi espontâneo.

RMH —

Quais foram as maiores dificuldades que encontrou no estudo da Matemática?

Eliza —

Na verdade, não tive dificuldade, pois sempre foquei meu interesse na disciplina e achava prazeroso estudar.

RMH —

Como você vê a situação do ensino da Matemática no Brasil nos dias atuais?

Eliza —

Olhe, eu acho o seguinte: um dos motivos de os estudantes não gostarem da Matemática é a disciplina não ser bem transmitida para eles. Como não é bem transmitida, eles vão levando de qualquer jeito e passam a dizer que não gostam da matéria. Eu nunca tive problema com meus alunos, porque eu gostava de ensinar. Ensinava com amor, com carinho, detalhando os conteúdos.

RMH —

E em relação ao gênero, acha que há diferenças entre aprendizado e interesse de meninos e meninas?

Eliza —

Não, de forma alguma. Tanto os homens quanto as mulheres podem se desenvolver da mesma forma, o importante é estarem fazendo o que gostam, o que desejam. Não há diferença cognitiva. O que acho é que os homens visam mais o lado material das coisas, da profissão, as mulheres, não. Nós buscamos o nosso ideal, lutamos com garra para alcançarmos o que queremos. Mas as mulheres realmente mantêm uma ligação forte com a família. As mulheres assumem a casa, a criação dos filhos, é uma dupla jornada. Isso pode abalar a trajetória profissional das mulheres. Os homens estão livres desses atributos.

RMH —

Em sua opinião, a questão das tarefas domésticas interfere no desenvolvimento/produção de homens e de mulheres? Como era na sua época e como vê isso agora?

Eliza —

Como já estou afastada do campo acadêmico, não sei bem dizer, mas realmente as mulheres assumem as tarefas e o cuidado com a casa e filhos. Acho que deve haver ajuda. Na minha época, eu vivia com mamãe e tinha ajuda, isso não me preocupava.

RMH —

Como a senhora vê a presença das mulheres no trabalho científico?

Eliza —

Eu acredito que qualquer pessoa pode realizar o que deseja. É preciso estudo e empenho em todas as áreas.

RMH —

Como foi sua trajetória em Matemática enquanto mulher negra?

Eliza —

Eu vivi a discriminação no momento de realizar meu exame de admissão na época. Fiz o exame e, na época, havia uma verdadeira euforia e atenção pelos resultados. Eu estava na pracinha brincando durante uma quermesse, quando ouvi um comentário entre várias mães que conversavam na praça: “Ah, saiu o resultado da admissão da Escola Normal, quem passou em 1o lugar foi uma ‘neguinha aí’ ”. Eu ainda não sabia que essa ‘neguinha’ era eu. Esse discurso era porque havia outras meninas de classe, filhas de A e B, que não passaram. Depois não observei isso, inclusive tive muitas colegas lourinhas e de olhos verdes de quem frequentava a casa, e não havia discriminação. Porém, quando eu ia ao salão de beleza com mamãe — eu adorava pintar as unhas desde os sete anos —, mamãe ficava revoltada quando acontecia alguma insinuação em relação a eu não ser filha dela (mãe branca, filha negra).

RMH —

Havia outras mulheres negras durante sua formação, durante sua vida acadêmica?

Eliza —

Em toda minha trajetória acadêmica, sempre convivi com pouquíssimas pessoas negras na sala de aula, mas quero dizer que não havia problemas, graças a Deus. Olha, acho que o fato de minha mãe ser uma mulher ‘alva’ e minha irmã Virgínia ser branca atenuava a discriminação.

RMH —

A senhora tinha noção do quanto seu título de Doutorado em Matemática seria um importante trunfo de exemplaridade para as novas gerações?

Eliza —

Olhe, sinceramente, eu nunca me apeguei a isso não. Atualmente é que tenho recebido pessoas aqui que me dizem isto de ser a primeira doutora negra em Matemática, mas eu nunca tinha me ligado nesse fato. Eu sempre levei “en passant”. Não fiz nada pensando em títulos. Fui fazendo meus aprimoramentos nos estudos sem essa preocupação de ser isso ou aquilo. Fiz o mestrado e o doutorado porque apareceu essa oportunidade na época. Era jovem, tive bolsa, confiei e eu fui fazendo. Nada foi pensado na época. Ia fazendo os cursos e deixando para lá.

RMH —

Por que acha que o título de Primeira Doutora em Matemática da Bahia e do Brasil ficou invisível durante muito tempo?

Eliza —

Não sei dizer, o que sei é que só começou a se falar nisso quando minha ex-aluna Márcia começou a investigar. Ou seja, minhas alunas começaram a buscar a história e foram resgatando as realizações. Foram mulheres que tiraram do apagamento minhas realizações.

RMH —

Como a senhora vê o protagonismo das mulheres negras matemáticas nos dias atuais?

Eliza —

Nunca deixei que a questão da cor da pele interferisse na minha vida, exatamente por isso, não sei bem dizer sobre isso. Porque, para mim, não importa a cor, o importante é termos pessoas realizando e conquistando seus espaços de forma pessoal e honesta.

RMH —

Que conselho daria para que o ensino de Matemática seja algo divertido/atraente?

Eliza —

O conselho é fazer com que os alunos se atenham mais aos estudos. Os assuntos sejam apresentados com maior prazer e, principalmente, de forma correlacionada com o dia a dia das pessoas. A interação entre os tópicos é fundamental. Eu acho que a formação dos professores é muito importante. Os primeiros anos de estudos para as crianças deveriam ser realizados por docentes capacitados para o ensino da Matemática, dessa forma, o medo da disciplina seria amenizado.

RMH —

O que mais gosta no estudo da Matemática?

Eliza —

Em matemática eu adoro tudo. Tenho prazer nos estudos, no ensinar, enfim, adoro.

RMH —

O que diria para incentivar mais meninas/meninos a estudarem Matemática?

Eliza —

Primeiro, eu mostraria para eles que a Matemática está presente em tudo na vida e, dessa forma, eles deveriam observar a importância desse estudo. Tem Matemática na cozinha, nas compras, nos trocos, no futebol, enfim, em cada detalhe da vida.

RMH —

Tem ainda algo que gostaria de registrar?

Eliza —

Gostaria de dizer que a formação dos professores e das professoras é fundamental. É importante que o ensino esteja nas mãos de pessoas que sintam prazer em ensinar, que se aprimorem e busquem transmitir o conhecimento de forma empolgante. Além disso, quero dizer que não importa se é menino ou menina, branco, loiro, negro, qualquer pessoa pode estudar e ser o que quiser ser, realizar os sonhos que desejar.

Entrevista realizada para a Revista de Matemática Hipátia (RMH) pela docente do IME Márcia Barbosa de Menezes em 15 de dezembro de 2022 na residência da professora Eliza.

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Márcia Barbosa de Menezes é docente do Departamento de Matemática da UFBA. Mestra em Matemática e Doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo. Atua na Pesquisa com o tema: “Trajetórias de Mulheres Matemática na Bahia: desafios e superações”, e no projeto de Extensão “Matemática é coisa de Menina”. Seu foco é incentivar meninas e jovens mulheres a admirarem, ingressarem e permanecerem atuantes na área das Ciências Exatas.


  1. A função de Coletor de Impostos, segundo Eliza, representava, na época, a terceira autoridade do Município: Prefeito, Padre, Coletor de Impostos.↩︎

  2. Na verdade, foram duas bolsas: no segundo ano do curso, Eliza recebeu uma bolsa da Philipps para custear os estudos do 3o ano. E, no final do curso, recebeu outra bolsa da Philipps como prêmio. A Phillips é uma empresa holandesa com produtos voltados para a tecnologia, produtos de consumo e estilo de vida.↩︎